segunda-feira, 29 de julho de 2024

Poema 235

Suas ideias vão pela janela
A perspectiva é nova
O espaço é o mesmo
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Lembra como é não segurar nada
Além de um corpo quente
A mente anestesiada
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Quanto tempo há no mundo
E como roubá-lo
Não tem cabimento

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Diário de desmame II - pequenas grandes coisas

02 janeiro
Preciso escrever mais porque as coisas acontecem e eu não sei como cheguei à tal lugar. Preciso ainda esvaziar minha cabeça e sair mais dela pois é muito fácil ficar sozinha com meus pensamentos.
Queria sair do campo das ideias e fazer mais coisas e escrever mil coisas sobre.

04 janeiro
Lembro de muitas vezes ir ao psiquiatra aterrorizada, sem noção do que esperar. De pedir ajuda e avisar alguém pois a consulta poderia ser um gatilho. 
Por muito tempo tive muito medo da minha cabeça e hoje parece um passado muito distante. 
Sinto minha cabeça em outro lugar e o fundo do poço finalmente parece longe.

02 fevereiro
Estou muito pobre mas nem tão desesperada. Queria fazer muita coisa e espero que logo consiga, cansada de estar no mesmo lugar.
Me sinto carente mas tenho feito bordados incríveis e fico feliz de outro jeito.

07 março
Finalmente as águas de março para fechar o verão.
Hoje é quinta e essa é a primeira semana sem nenhum remédio em dez anos.
Tenho tontura e algumas emoções rapidamente arrebatadoras. Ainda bem que me questiono muito mais pois também acho que posso estar mais impulsiva.
Ainda quero muitas coisas sem conseguir meios de realizá-las mas seguindo em frente, sem saber onde a estrada vai dar. 
Tentando trabalhar essa 'auto suficiência' mas queria ser amada e cuidada.

23 março
Gosto muito quando chove, parece que o mundo tomou banho. Gosto muito de tomar banho também.
É estranho sentir emoções de um jeito diferente, parece que estou o tempo todo aprendendo, como Bella Baxter.
O tempo inclusive parece passar diferente. Ou talvez eu esteja mais disposta a me concentrar nele. Curiosa ou ansiosa?

24 março
Estou tendo grandes reações ao contar às pessoas que agora não sou mais medicada, acho engraçado. Como se fosse impossível ou eu tivesse feito mágica para chegar nisso.
Parece inacreditável que eu conseguiria mas ao mesmo tempo penso que o caminho que tomei (uma década atrás) levaria à essa situação, eventualmente.
Apesar de estar triunfando em saúde mental, sofro financeiramente, como sempre.
Acho que chegou a hora de escrever aquele livro.

04 abril
Ontem tive uma cólica terrível, fumei 2 becks e tomei 3 remédios. Meu útero sugou toda minha energia.
Quando tenho crises de dor, sinto falta de cuidado e lembro de um ex namorado. Lembro de quando estava deprimida demais e ele me dava banhos, um ato primário de cuidado. Queria não ser a pessoa que sente a dor e banca os remédios uma vez de novo, faz muito tempo.
Me sinto sozinha e sei que desejar as coisas do passado é errado, mas não consigo evitar. 
Queria tanta coisa mais que isso e não consigo avançar. 
Não sei bem ainda qual lugar quero estar mas penso que seja longe daqui. Sinto que o que sou não serve aqui e queria tentar em outro cenário.
Queria crescer em outros aspectos além do tratamento. Às vezes penso muito que o que me falta é uma chance e não sei mais onde procurar uma.
Ainda sinto que há um buraco em mim mas tenho tomado cuidado para não enfiar qualquer coisa nele, afinal é assim que me ferrei tanto.
Só queria encher-me de coisas boas.

13 abril
Ontem foi aniversário da Bea e comemos bolo e tomamos vinho. Por mais coisas ruins que surgirem, eu inventarei algo bom para compensar.
Tem sido tempos difíceis e acho que não podemos perder a chance de celebrar. 
Hoje celebro no karaokê, com um cosmopolitan e vou para casa antes da meia noite.

21 abril
Ontem passei o dia dopada e emaconhada em guerra com meu útero, uma dor que não cessava. Assisti Soul e comi pipoca enquanto deitava com muitas almofadas.
Fui dormir tristinha e carente mas é normal em dias de dor. Me sinto sozinha e queria cuidado.
Queria um trabalho para 'acumular riqueza' e conseguir fazer mais coisas interessantes, passeios, cursos, sair de casa finalmente. Sinto que seria ótimo crescer sozinha, ter mais liberdade e não ter que me esconder em quartos.

19 maio
Voltando de uma festa onde trabalhei mais de 12 horas e no metrô de manhã uma gay louca acendeu um cigarro.
Meu aniversário está chegando, meu ex mandou mensagem, me matriculei na academia e em um curso novo. Nada está ideal ou do jeito que eu gostaria mas ao menos parece progresso.
Queria ir ao museu e comer uma sobremesa para me sentir viva.

23 maio
Hoje tive o primeiro dia de curso e tive que passar na rua do meu ex. Na ida fui correndo e nem reparei mas o mercado em frente ao prédio dele foi demolido e será um novo prédio de apartamentos.
Achei poético. Foi um lembrete feliz de que coisas tem sua data de expiração e afinal elas mudam, como eu.
Na análise dessa semana estava pilhada por ter a chance de esbarrá-lo na rua e sonhei com ele. Eu ligava, ele não podia falar comigo. Eu seguia.
Antes, não ser atendida me levava mais longe na crise, desesperada e desamparada. Era demais para mim, lembro de ter brigas terríveis por meu namorado - muitas vezes em outro fuso horário - não me ouvir ligar de madrugada ou no meio do dia.
Esses dias na análise também cheguei à conclusão que os 28 talvez foi o ano que passei mais sozinha. Tive que trabalhar demais para deixar de tomar os remédios e finalmente me sinto melhor. 
Estou construindo coisas além de mim mesma.

domingo, 17 de março de 2024

Amor

Assisti La La Land em um cinema em Dublin, em um Valentine's muito longe e muito frio. Chorei uma dor de presságio, sabendo que o homem do meu lado, que acabara de colocar um anel no meu dedo, iria embora e nossos caminhos seriam distantes, como no filme. 
Tenho uma mania resistente de recordar as coisas boas e deixá-las silenciar as terríveis. Me agarro intensamente em lembranças reprisadas, em falas esquecidas e toques perdidos. Não tive afeto na infância e isso me afeta. 
No começo, quando relações começaram a ser parte da minha vida, não sabia o que significava a maioria dos sentimentos. Fui vítima do 'se não sei o que é, qualquer coisa pode ser' e me enfiei em trocentos buracos negros com quem não se importava comigo de verdade. Passei por uma criação onde a violência era fundamental e acabei engolida por uma pessoa manipuladora. Depois da primeira vez que aceitei um pedido de casamento, aos dezesseis, desejava todos os dias que minha parceira morresse e eu pudesse continuar a vida sem remorso. Me impressiono até hoje quando penso em como consegui pôr um fim naquele pesadelo maquiado de paixão.
Quando cruzei um oceano e dois continentes para passar férias com outro companheiro, estava afundada em bagunça mental. A doença comia o meu cérebro, a dependência emocional era nítida, no entanto, a ilusão era maior e eu a alimentava sozinha. Naquele dia no cinema, eu sabia o desfecho e ainda levei bastante tempo para me distanciar da situação, me desapegar dos poucos momentos que eu destilava continuamente a fim de obter algo palpável daquela relação.
Meu coração foi partido muitas vezes antes de encontrar alguém que me ensinasse o que era amor, realmente. E também por essa mesma pessoa, o que me deixa com um sabor agridoce quando relembro esse capítulo.
É difícil explicar a lacuna que existe numa pessoa que não teve referência desse elemento tão básico da vida humana porque elucidar algo que você desconhece é uma dúzia de tiros no escuro. É como se todo o amor do mundo nunca fosse me preencher porque o vácuo não é dimensionável. Como se eu tivesse sido criada por lobos e tive de fazer um trabalho imenso de ressocialização para conseguir existir. À essa altura, depois de tantas pessoas, monólogos internos e noites chorando sozinha, tenho uma boa noção do que é o amor. Uma coleção de coisas que costumo dizer que 'aquecem o coração' ou 'alimentam a alma'.
Ele não inclui violência e insegurança, como meus pais mostraram. Ou quebra de promessas e desconsideração, que vários parceiros ofereciam em troca de momentos. Descobri também que a verdade é o mais importante, eu que me deixo levar por qualquer cenário ilusório que possa resolver meus problemas enquanto tento remendar os rasgos óbvios em um relacionamento. 
Nos dias em que estou saudosista e emocionada, consumindo os vestígios de conexões já terminadas, tento evocar um lado racional e me afastar das ideias que existem na minha cabeça e no passado; da concepção que guardo de lembrança do que foi, e é cansativo, pois tudo que eu quero é me agarrar em algo bom que nunca tive e viver naquilo confortavelmente, sem ter que pensar nos inúmeros motivos pelos quais aquilo não existe mais. Consigo me colocar mentalmente em qualquer lugar que já estive e ter que suprir boas recordações com os momentos que me fizeram estar tão longe delas é um exercício torturante, tentar aplicar pensamento lógico em um sentimento enquanto ele borbulha.
Não é como se eu nunca mais fosse amar ou ser amada, isso nem faz sentido. É a dor de olhar para algo tão significativo e sensível e ter de ser meu próprio órgão de censura para não viver sonhando com circunstâncias já inalcançáveis. Uma angústia de deixar apagar o cuidado que demorei tanto para conseguir e que foi embora tão de repente como chegou. O carrasco e a vítima, no mesmo lugar.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Poema 234

Estão todos ainda em minha pele
Se fecho os olhos e penso um segundo
Aparecem seus vultos ao pé da orelha
Sussurrando enquanto sinto mãos quentes
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Será que eu os atormento assim?
Será que um dia minha memória falha?
À essa altura queria ter construído mais
Não chegado e partido tantas vezes
---
De noite sinto falta de conforto
De nenhum deles especificamente
Acho que me acostumei a olhar o passado
Envolta em histórias que sei o final

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Diário de desmame I - pequenas grandes coisas

19 julho
Sou uma pessoa capaz de falar sobre 5 assuntos diferentes enquanto realizo uma tarefa mas a diminuição do lítio tem adicionado à isso uma dúzia de emoções.
Tudo ao mesmo tempo em um único lugar: eu. Não é uma boa sensação e tem dado trabalho.
Me encontro envolta em todas as emoções, choro e tento me acalmar com os truques que conheço enquanto espero passar. 
Não consigo acreditar que um dos temas da minha vida seja homens fantasmas ressurgindo, de alguma forma preciso encerrar esse assunto.
A ideia de cuidar de si mesmo é tão admirável e difícil. Por um momento queria sentir esse peso fora dos meus ombros e talvez por isso eu me permita ser assombrada.
Me sinto exausta e desmotivada, entretanto, dessa vez, paciente e confiante em como tenho lidado com tudo: emoções, pessoas e vontades.

21 julho
Quis escrever para guardar essa sensação afinal é o que faço.
Tenho uma pequena coleção de momentos de absoluta clareza, de epifanias e extremo alívio e estes dias revirados me deram mais um.
Em poucos segundos percebi que o homem que eu tanto amava era apenas mais um que me amava com porém. 
Te amo mas vou mudar de país e casar com outra pessoa. Te amo mas não suporto sua cabeça. Te amo mas tem que ser minha. Te amo mas não consigo lidar com seus problemas.
E decidi não mais alimentar isso.
O que há de ser feito com todo esse amor se a pessoa que ama não está disposta a fazer algo sobre? Nada. E cansei de estar nessa posição.
Na minha concepção de amor ele não nega os poréns mas os considera antes mesmo da definição do sentimento.
Marilyn disse 'se você não suporta o meu pior, não merece o meu melhor'.
E ficar sozinha é complicado mas hoje não parece tão pior. Sinto que finalmente tenho bases que me impedem de desabar como antes.
Sei que ainda posso voltar a ficar abalada mas talvez eu tenha feito as pazes com a tristeza e hoje ela não amedronta tanto.
De qualquer modo, quero o melhor para mim e repito o lembrete diariamente.

04 setembro
Tenho sentido e lembrado de muita coisa.
Os sentimentos tem fervido como uma chaleira por mais tempo que o normal e tenho respeitado isso.
Não tenho mais medo do futuro ou de mim e não quero me matar: estou no lucro.

08 setembro
Aborrecida com coisas grandes e pequenas e sobretudo com aquelas sobre as quais não tenho controle.
Hoje fiquei puta porque ouvi uma música muito mal remixada.
Limites parecem duros quando impostos e ultimamente as pessoas tem reagido por eu não aceitar qualquer coisa. Tenho dito muitos nãos: não, não gosto, não quero, não me interessa, não fale comigo nesse tom. Tento me lembrar que não posso parar, não importa a reação.
Me sinto incompreendida por muitos e tento me convencer de que somente eu preciso me entender. O que é solitário, mas o preço a se pagar pela sinceridade.
No final do dia ou no seguinte minhas decisões não me atormentam e talvez isso seja vitória.
Cansei de fazer coisas sem sentido e do que elas faziam comigo.

11 setembro
Tenho tentado muito ser uma pessoa da qual minha versão criança sentiria orgulho, segurança e acolhimento.
Gostaria de ter mais conexões positivas na minha vida, parece cada dia mais escasso e difícil.
Cuidar de mim tem sido mais fácil. Acima de tudo lembro que me quero muito bem e consigo tranquilizar uma parte da minha cabeça que sempre gritou muito.
Me sinto sozinha mas há tempos não tenho toques de carinho sincero. Agora não é mais um inferno a solidão mas queria companhia.

25 setembro
É incrível não ter a morte como solução e me impressiono todos os dias por não ter mais pensamentos suicidas.
Tenho apreciado e tentado cultivar e multiplicar os momentos de silêncio na minha cabeça. Me fazem sentir que finalmente meu sistema nervoso sabe o que é paz.
Queria muito mais liberdade e tenho me esforçado para isso. Sinto que posso construir mais assim e não vejo a hora de conseguir.

20 outubro
Tão feliz que esqueci de tomar antidepressivo.

05 novembro
Não sinto exatamente alguma mudança emocional com essa mudança medicamentosa.
É estranho pensar que eu sou uma pessoa equilibrada com tão pouca medicação.
Sinto diferença no meu corpo, no apetite, até sexual. No sono, tenho sonhado mais e também no descanso, às vezes me sinto totalmente energizada como há tempos não sentia.
Não tenho muito medo, de conseguir ou não. Estou ao mesmo tempo ansiosa e acalentada por mim mesma, usando a voz da minha cabeça como lembrete dos mantras.
Não acho que algo possa me destruir completamente agora.

03 dezembro
Hoje é domingo, depois do almoço e meu peito dói.
Sinto o peso das coisas ruins e choro muito, sozinha de novo num canto do meu quarto.
Sinto que não construí nada e nem sei como fazê-lo. Que passei dez anos aprendendo a ser gente e agora não sei o que fazer com isso.
Vejo as pessoas fazendo coisas e planos e me sinto alheia ao mundo real. Sem trabalho, sem apoio e sem perspectivas.
Pela primeira vez em muito tempo fico em dúvida se devo continuar porque não sei mais de que jeito tentar. Qualquer coisa.

domingo, 12 de novembro de 2023

Poema 233

Vivo pela negação
Os momentos de mente vazia
Onde esqueço qualquer preocupação
Quando nem dói estar sozinha
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Deu trabalho chegar aqui
Às vezes de noite me perco em memórias
Parece uma tarefa sem fim
Essa de reescrever a própria história
---
Não pretendo incitar revoluções
Mas eu mesma passei por algumas
Apenas uma mulher com questões
Cada uma em camada mais profunda

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Poema 232

No acervo de casos absurdos
Que eu chamo de mente
Tive que jogar tudo ao chão
Como muitas vezes fui também lançada
---
Na altura do rodapé
Eu e meus registros de mim mesma
Eu e meus pedaços espalhados pelo piso
Emoções misturadas em pilhas desordenadas
---
Me acostumei a viver na bagunça
Mas que alívio poder organizar
As palavras, risos e dores
Enfim posso usar as prateleiras mais altas

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Poema 231

Tenho acalentado tanto à mim mesma
E tento o tempo todo
E intimidade nenhuma torna essa existência tolerável
---
Todos os dias deitar e acordar
Com a certeza de uma mão em minha cintura
E antes que a realidade te amorteça
O coração esquenta

domingo, 18 de junho de 2023

Poema 232

Para os homens que me provam
O corpo como parque de diversões
A mente como uma viagem
E o terror da recaída
---
Eu entendo suas partidas
Mas isso não me alivia
Ainda penso em cada despedida
Os beijos agridoces e abraços fortes
---
Continuo a me entreter momentaneamente
Não espero coisas especiais da vida
Sempre acho que a próxima vai doer menos
Afinal é por isso que continuo tentando
[Original 2021]

sábado, 13 de maio de 2023

Feliz dia das mães

A história de quando minha mãe me expulsou de casa

Sendo bem sincera nunca parei para escrever essa história, ela é uma memória viva e intensa na minha cabeça, uma que eu posso acessar a qualquer momento e me sentir novamente com nove anos de idade.

Essa é uma lembrança longa, detalhada e por muito tempo eu só fingia que não existia, porque foi o que minha família fez: varreu para debaixo do tapete e ninguém tocava no assunto. Tenho esse episódio completo muito nítido quando penso sobre mas incrivelmente as memórias de antes e depois são apenas manchas.

Não lembro por exemplo que dia era mas lembro de abrir a porta de casa. Estava ansiosa porque íamos jantar esfihas em formato de coração, item promocional de um restaurante. Particularmente estava feliz de estar de volta – tinha passado dois anos na minha avó – mesmo que já percebesse um afastamento da minha mãe.

A minha teoria é que ela nunca gostou de olhar pra mim e ser lembrada do meu pai, não foi um relacionamento positivo – se é que ela seja capaz disso.

Quando voltei para casa, Paulo Henrique já estava instalado como figura paterna do meu irmão e chefe de família.

Paulo Henrique era o novo e antigo namorado da minha mãe. Eles tiveram um romance quando eram adolescentes e ambos seguiram caminhos diferentes porém similares. Ele também era divorciado e tinha um filho muito mimado.

Minha mãe o tratava como se fosse a mais ilustre pessoa – era um executivo da Siemens e de fato tinha muito mais dinheiro que ela. Ele me ensinou a jogar xadrez e quando eu e minha irmã levávamos bronca ele não se pronunciava, era padrasto apenas do meu irmão.

Não lembro de muita coisa envolvendo ele mas quando já havia passado um ano desse acontecimento, ele me levou para jantar e pediu perdão. Após isso, aos poucos, a minha família foi percebendo o estelionatário e perverso homem que era.

Chegando em casa aquele dia fui direto ao banheiro lavar as mãos para o jantar. Ao me virar para sair – tinha deixado a porta entreaberta – não percebi que meu irmão estava atrás de mim, tinha me seguido para fazer o mesmo. Tropecei nele que tropeçou para trás e bateu a cabeça no trinco da porta.

Meu irmão é cinco anos mais novo que eu, o que pode mostrar uma diferença de força, mas isso nada mais foi que um acidente.

E em trinta segundos minha vida mudou.

Meu irmão começou a chorar, Paulo Henrique começou a gritar dizendo que eu fiz de propósito e tentei matar meu irmão e minha mãe deixou de ser minha mãe.

Eu comecei a esperar pelo castigo, pois praticamente todos os dias ela encontrava um motivo para me bater então eu sabia que seria ruim. Sinto que respirei fundo um segundo e só consegui respirar de novo quando tudo passou, ela não me deu nenhuma chance de explicar.

Lembro de ser puxada e jogada na parede. Dessa vez era diferente, ela não estava medindo a força. Tentava dizer minha versão do que aconteceu, ela batia no meu rosto. Tentava proteger meu rosto, ela socava meu corpo. Caí no chão e ela começou a me chutar, o que me fez pensar que algum limite tinha sido extrapolado.

Não parece muito certo uma mãe chutando o estômago da filha três vezes menor. Nunca pareceu certo nas outras vezes em que ela me bateu mas entendo que havia um contexto de educação, disciplina. O que estava acontecendo agora era diferente, era pura fúria e eu era o alvo.

Até hoje não sei se durou quatro ou quarenta minutos mas lembro da sensação de não conseguir respirar porque depois que ela parou, eu não conseguia falar. Me encolhi num canto no chão e fiquei ouvindo o Paulo Henrique no sofá – com meu irmão no colo – dizendo que eu era horrível e queria destruir a família deles.

Eu na verdade só queria comer esfihas de coração e nunca consegui.

Minha mãe ligou para o meu pai e disse que ele tinha que me buscar imediatamente, que eu não morava mais naquela casa. Ele queria entender, ela não queria explicar. Me colocou no telefone e nenhuma palavra saía, eu só estava tentando recuperar o ar.

Ela então empacotou minhas coisas em sacos de lixo quase da minha altura e me deixou na calçada junto com eles, fez questão de trancar o portão e esperar do lado de dentro. Talvez esse tenha sido o momento em que percebi que não somente minha mãe não gostava de mim, ela era capaz de me matar e não estava mais disposta a ser minha mãe.

Quando meu pai chegou, eu ainda não conseguia respirar. Não sei se era o choro, o trauma, os chutes ou a asma, mas eu só consegui falar quando chegamos na casa da minha avó. Expliquei o que aconteceu gaguejando e a partir daquele dia, eu moraria com a minha vó novamente.

Já adolescente ouvi rumores que nessa situação, Paulo Henrique fez minha mãe escolher entre eu e ele, o que não me impressionaria pois ele é um ótimo manipulador. Independentemente de ter sido uma ‘escolha de Sofia’ a minha opinião é que quando algo é tão errado em tantos níveis, não há justificativa.

A qualquer momento alguém poderia ter parado aquilo, os envolvidos, a vizinha da casa da frente que me ouvia gritar, e todos escolheram não fazer isso. Minha família escolheu tratar isso como somente mais um episódio da Janaina, essa mulher estourada de forte personalidade, e na verdade não era nada disso.

Foi pura violência e ostracismo de poder. Um desequilíbro emocional alarmante. Falta de empatia completa, falta de paciência com filhos que não pediram para nascer. Um crime. Olho pra minha mãe em qualquer fase da vida dela e só consigo ver caos, em vários níveis. Hoje eu consigo ficar feliz de ter excluído essa pessoa da minha vida mas ainda todos os dias sou lembrada da falta de figura materna. Ninguém me ensinou como lidar com menstruação ou paqueras, por exemplo.

Àquela altura da minha vida, essa foi a maior dor que passei, física e emocionalmente. Algo se quebrou em um milhão de pedacinhos dentro de mim naquele dia e demorei uma eternidade para consegui organizá-los de novo. Hoje ao olhar pra trás consigo ser a pessoa que a pequena Rayanne tanto precisou, o acolhimento que não existia, a compreensão que ninguém se deu ao trabalho de oferecer. 

Mas esse acontecimento minou todos os relacionamentos da minha vida até o momento em que consegui fazer isso e por muito tempo eu dizia às pessoas que minha mãe estava morta, porque doía menos que assumir que eu era indesejada pela pessoa que me colocou no mundo. 

Ela nunca falou sobre isso, não pediu desculpas nem tocou no assunto. Ela inclusive disse que não se arrepende de nada que tenha feito, pois estava sempre pensando nos filhos, o que é uma das maiores mentiras que já ouvi.

Uma pessoa dessa precisa de tratamento urgente.

Hoje faz cerca de dez anos que não troco palavras com ela, e quase 20 de quando isso aconteceu. Todas as vezes em que eu digo isso, ainda dói, mas cada dia menos: eu não tenho mãe.