terça-feira, 25 de maio de 2021

Conto sobre o outro eu

Existem coisas dentro de mim.
Não coisas comuns como órgãos, mas uma outra pessoa além de mim, que vive na minha cabeça e toma o controle às vezes.
Sinto que viver pra mim é fazer um esforço diário de manter essa pessoa enjaulada e quando acho que está tudo bem, ela ataca. Porque monstros não podem ser adestrados.
Ao longo do tempo eu fui aprendendo sobre ela como ela aprendeu sobre mim. Não é uma questão de responsabilidade, sei que sou as duas pessoas e respondo pelos atos de ambas. Mas ainda não é suficiente, para o futuro. Por enquanto as ferramentas e proteções e medidas mitigadoras e mecanismos de defesa tem funcionado, em contenção de danos. É possível prever e lidar, não é possível evitar.
Então vamos ao ponto. Esse conto é sobre a experiência que meu corpo passa toda vez que há uma perda na estabilidade. Existem efeitos leves e graves, mas espero listar todos.

Ultimamente, como conheço melhor os gatilhos, eles não me afetam tanto. Sou do tipo flight, em fight or flight. Pego minhas coisas, viro as costas e vou embora. Diversas vezes dissociei, porque meu cérebro não funciona mais em confrontos. Então além de ficar mal pelo ocorrido, pelo gatilho e por ter que resolver isso depois, eu ainda ficava mal porque não conseguia lembrar de nada. Faz um certo tempo que isso não acontece e me orgulho disso.
Um item frequente em crises é o choro. Horas e horas desesperada e ofegante até meu corpo literalmente cansar e eu cair no sono. Raramente consigo sair de uma crise grave sozinha, ou ligo pra alguém ou tomo calmante. Às vezes o choro não acabou, só acabou minha energia; então eu acordo e começo a chorar imediatamente.
(Nos últimos anos tenho chorado mais também de felicidade. Não me lembro de ter chorado de felicidade pelo menos até os vinte e poucos.)
Pode durar dias. Já chegou a durar meses. É uma variável imprevisível, esse ano tive crise de dois dias e duas semanas.
Não sinto fome e na verdade, pensar em comer já me enjoa. Não tenho vontade de preparar nada pois acho que cozinha é um ato de amor e esse é um tipo de autocuidado que não sou capaz de ter nesses momentos. O máximo que consigo é me obrigar a comer pelo menos uma vez por dia quando estou passando por isso. Negligencio banhos, dentes e interações sociais, mas não os remédios, cigarros e água.
Parece ridículo olhando desse ângulo. O meu cérebro consegue me manipular de uma maneira em que não tenho energia fisicamente. Em um momento eu acredito que não funciono nesse mundo então entro em um ciclo de lágrimas, nicotina e clonazepam que me esgotam mais ainda. 
Mas os efeitos das crises no meu corpo são mais brandos que na minha mente. Em algum tempo eu volto a comer, viver, sorrir e tentar, tudo isso enquanto tento lidar com o pós: as pessoas, a análise, o trabalho pessoal pra conseguir manter a fera sob controle mais uma vez.

Eu não sei muito bem porque continuo. A conclusão mais recente à qual eu cheguei foi que a minha alternativa à isso é o hospital (psiquiátrico ou emergência) e essa opção não me interessa.

(Antes de publicar esse texto e depois de lê-lo no dia seguinte, senti que estava incompleto)

Ao longo dos anos fui tentando inúmeras formas de ser uma pessoa útil na sociedade, desde psicodrama à maconha. Passei por muitos psiquiatras e psicólogos, mas hoje tenho pelo menos um desses profissionais que está de fato interessado no meu caso. 
Ele me diz que a parte mais difícil, lidar comigo mesma, eu já sei. De fato, para mim 'o inferno são os outros': é extremamente trabalhoso tentar me encaixar no sistema.
Eu não sei que porra aconteceu. Ou qual das porras foi a definitiva. 
Acredito que na verdade é um mix completo de todas elas, em full hd, experiência completa, disponível em todas as plataformas, o tempo inteiro na minha cabeça. É como se fosse uma biblioteca gigante e cada livro é sobre um acontecimento diferente. Eu posso pegar os livros quando preciso ou quero mas acontece que tem um terremoto eterno acontecendo e os livros são jogados na minha cabeça, um atrás do outro. 

A primeira vez que eu pensei que precisava de ajuda, contei ao meu namorado. Disse que tudo bem que ele quisesse me ajudar mas eu achava que tava fora da alçada dele e tinha alguma coisa errada comigo, queria ter certeza pra saber que eu não era essa pessoa horrível. Ele respondeu "É justamente por isso que você não melhora, não me deixa te ajudar".
Hoje eu me pergunto: querido, como caralhos você vai ajudar meu cérebro a produzir enzimas? Gostaria de saber como você pretende lembrar e lidar com traumas passados que nem seus são. E claro, você vai me lembrar todos os horários de remédios, consultas e terapias?

Ah sim as terapias!
Em psicoterapia temos Jung, psicodrama e psicanálise, onde tive mais sucesso com Freud mas meu preferido continua sendo Jung. Também passei por acupuntura, aromaterapia e maconha, sendo a última muito eficiente.
Os remédios eu já não me lembro mas lembro de ter trocado ao menos 6 vezes.

Uma vez um psiquiatra disse na minha cara que eu nunca viveria sem remédios e terapia e isso nunca mais foi embora. Virou uma faixa numa das alas da biblioteca, às vezes estou cuidando da minha saúde mental e a voz dele aparece na minha cabeça. Por que pra ele é ótimo ter um paciente assim e isso me deixou puta, pra mim não era nada ótimo.

Mas então me vem à cabeça que pelo menos nesse quesito estou sendo uma peça do sistema. A minha cabeça desequilibrada me faz ser parte de uma realidade de pessoas também desequilibradas.